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Alta literatura na música pop: Leonard Cohen – “Songs Of Leonard Cohen” (1967)

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O fato de ser antes de tudo poeta e romancista já renderia assunto suficiente para abordar a trajetória do mítico Leonard Cohen. Mas embora esteja na literatura a força motriz de sua criação, foi na música que esse canadense de origem judaica conseguiu emplacar sua marca definitiva na cultura pop.

Muitas vezes posto no seleto panteão encabeçado por gente como Bob Dylan, Neil Young, Paul Simon e Joni Mitchell, Leonard Cohen ingressou tardiamente no ofício de cantor/compositor. Em meados da década de 1960 sua persona de escritor já havia alcançado reconhecimento internacional e vendagem na casa dos 800 mil exemplares com seis livros publicados: Let Us Compare Mythologies (1956), The Spice-Box of Earth (1961), The Favourite Game (1963), Flowers for Hitler (1964) Beautiful Losers (1966) e Parasites of Heaven (1966).

Tudo parecia bastante cômodo para Cohen, que a essa altura vivia na Grécia dos seus louros. Mas seu gênio criativo exigiu uma guinada e foi para os Estados Unidos cair de cabeça na música e tentar a sorte. A ideia inicial era arriscar no country, o qual já tinha alguma afinidade por ter tocado quando adolescente na banda Buckscking Boys. Mas ao invés de procurar inspiração em Nashville, acabou indo parar no efervescente cenário nova-iorquino da música folk.

Suas canções ganharam voz pela primeira vez em 1966, por meio de Judy Collins, que gravou “Suzanne” e “Dress Rehearsal Rag” para o disco In My Life. Um ano depois Leonard deu um grande passo participando do lendário Newport Festival, e foi lá que conseguiu chamar atenção de John Hammond, empresário responsável pelos primeiros registros de gente como Dylan e Billie Holiday. A partir daí tudo foi bem rápido: assinou um contrato com a Columbia Records, passou outubro e novembro no estúdio e no dia 27 de dezembro de 1967 saía a pérola “Songs of Leonard Cohen (1967).

Diferente da maioria dos seus contemporâneos, a estreia musical de Leonard Cohen trouxe um toque diferente para o folk do eixo Canadá-Estados Unidos. Um dos motivos que levou a isso foi a bagagem de influências do compositor, que desde seu trabalho com a literatura dialogava muito mais com a estética europeia. Também se fez bastante importante o uso do violão clássico, o que não é exatamente o usual entre artistas desse gênero. A sonoridade das cordas de nylon evocava outro tipo de espírito, às vezes até remetendo ao flamenco, como é o caso em “Teacher” e na ótima “The Stranger Song”, uma das melhores faixas do disco. Outro fator a ser considerado é que naquela altura Cohen já não era mais um moleque. Com seus 33 anos certamente ele sabia muito bem qual era a sua linguagem.

Suzanne Verdal

O disco começa com “Suzanne”, uma das canções definitivas do folk norte-americano da segunda metade do século XX. Considerada pelo próprio Cohen sua melhor composição, a música foi inspirada em Suzanne Verdal McCallister, uma jovem dançarina, então namorada do escultor Armand Vaillancourt. Baseada em fatos reais, a letra descreve um relacionamento platônico e algumas trivialidades que compartilharam juntos quando se conheceram. É basicamente sobre um cara que se apaixona, embora eu não consiga me recordar de outra música que descreva isso de modo tão sublime. Na verdade, a canção veio do poema “Suzanne Takes You Down”, publicado um ano antes na coletânea poética Parasites of Heaven. Emotiva, suave e extremamente memorável desde a primeira audição, “Suzanne” é uma obra-prima. Esses versos não me deixam mentir:

Suzanne takes you down to her place near the river
You can hear the boats go by
You can spend the night beside her
And you know that she’s half crazy
But that’s why you want to be there

And she feeds you tea and oranges
That come all the way from China
And just when you mean to tell her
That you have no love to give her
Then she gets you on her wavelength
And she lets the river answer
That you’ve always been her lover

And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you know that she will trust you
For you’ve touched her perfect body with your mind.

Além de Suzanne Verdal, outra musa de carne e osso foi exaltada no disco, mais precisamente em “So Long, Marianne” (outro clássico absoluto) e em “Hey, That’s No Way to Say Goodbye”. Trata-se de Marianne Ihlen, uma norueguesa que Leonard conheceu na Grécia e com quem teve um intenso romance que de certa forma perdurou até o fim de sua vida. Na época em que começaram a manter um relacionamento ela havia sido deixada pelo marido com seu bebê de seis meses. Acabaram ficando juntos por alguns anos na década de 1960 e esse caso jamais deixou de ser rememorado por ele. A ligação entre ambos parecia tão intensa que até a morte deles coincidiu. Marianne faleceu em julho de 2016, com 81 anos, e ele em novembro do mesmo ano, aos 82. Ambos de Leucemia. Cohen escreveu para ela pouco antes de sua morte. Em uma dessas cartas ele disse: “Estou um pouco atrás de você, perto o suficiente para pegar sua mão. […] Nunca esqueci o seu amor e a sua beleza. Mas você sabe disso. […] Boa viagem, velha amiga. Até o caminho. Amor e gratidão.” Marianne também é a inspiração por trás de “Bird on a Wire”, faixa que abre seu segundo álbum, Songs From a Room.

Marianne Ihlen com seu filho Axel Joachim Jensen Jr. e Leonard Cohen

Embora não creditados na ficha técnica, o disco conta com Chester Crill, Chris Darrow, Solomon Feldthouse e David Lindley, todos membros da Kaleidoscope. Há também vez ou outra um coro de voz feito por Nancy Priddy. E sobre esse som de apoio, vale dizer que é um trunfo à parte. Os arranjos delicados serviram como uma luva para o lirismo das faixas, sem descambar para excessos ou qualquer maneirismo supérfluo. Vez ou outra também entra um instrumento de corda ou metal, mas sempre com esse paradigma de bom senso. “Master Song” e “Winter Lady” exemplificam bem essa atmosfera minimalista. Já “Stories Of The Street” talvez seja aquela que mais abraça a vibe “a la Bob Dylan” de se fazer folk, enquanto que a valsa “Sisters Of Mercy” – que sim, inspirou o nome da banda gótica – exala o espírito europeu que Cohen não consegue abandonar por completo em nenhum momento.

Apesar de atualmente ser considerada uma das estreias mais celebradas da música pop, a exaltação em torno de Songs of Leonard Cohen não foi unânime. Até pode-se dizer que o disco perde um pouco o fôlego no fim com “One Of Us Cannot Be Wrong”, mas passa muito longe de cansar. Na época, a imprensa dos Estados Unidos classificou o trabalho como “muito pessimista”, outros como “razoavelmente digerível”. O disco até chegou a entrar na lista da Billboard, mas, como era de se esperar, foi na Europa que deu mais certo.

O tempo acabou sendo generoso com Leonard Cohen enquanto músico. No decorrer de sua longa trajetória foi adquirindo uma porção de fãs ao mesmo tempo em que crescia seu status de lenda, inspirando artistas como R.E.M., Nick Cave, Elvis Costello, Courtney Barnett e, por aqui, Renato Russo.

Hoje qualquer pessoa minimamente interessada por boas letras passa por sua obra e percebe que nessas músicas têm um ar de genialidade poucas vezes superada no cancioneiro do nosso tempo. Leonard Cohen reafirma em sua estreia musical que a poesia na música pop pode sim ser alta literatura, o que veio a ser reconhecido somente em 2016 com a chegada do Prêmio Nobel de Dylan. Não seria nenhum absurdo dizer que Cohen também merecia um título desses. De qualquer forma, seus álbuns incríveis estão aí. Ouça, leia e vai ver que não é exagero. Nada mal para quem começou “tarde” nesse ramo.


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